Lei vai mudar. "Até me ferve o sangue de pensar que o meu filho não pode ir mariscar comigo"


Francisco e Tiago Violante, pai e filho, não podem mariscar juntos. Moram na mesma casa na aldeia de Sonega, a escassos quilómetros de Porto Covo. O pai, de 53 anos, nasceu em Sines e pode apanhar marisco, mas o filho, de 27 anos, nasceu em Santiago do Cacém e está proibido por lei de "ir à maré" para a tradicional apanha de polvos, lapas, mexilhões e perceves. Confuso? A culpa é da legislação aprovada em 2009 pelo anterior Governo, que define a atividade de pesca lúdica e de lazer (sem fins comerciais) em todo o território nacional, com regras muito específicas para o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

Por causa da escassez progressiva de algumas espécies, como perceves e navalheiras, dita a lei que na região só podem mariscar os residentes e naturais de Sines, Odemira, Aljezur e Vila do Bispo, que detêm o exclusivo da apanha pela "considerável importância social e cultural" da pesca lúdica para estas populações.

"Até me ferve o sangue só de pensar que o meu filho não pode ir mariscar comigo, e saber que há pessoas na aldeia que não vão ao mar há mais de três anos", diz Francisco Violante, o "Chiquinho de São Torpes", enquanto caminha pelas rochas à beira mar, com a ilha do Pessegueiro em pano de fundo. Uma "discriminação", garante, que está a dividir as pessoas da terra (em Sonega só pode mariscar a escassa minoria que reside na freguesia de Sines, ficando de fora os de Cercal do Alentejo e Porto Covo) e, mais importante, a afastar os turistas, que vinham de todo o país para apanhar marisco na costa alentejana, com passagem obrigatória no seu restaurante.
Ao fim de três anos de luta intensa, sob o mote "Mar privado, não!", manifestações na capital e reuniões sem conta na Assembleia da República, Francisco Violante tem agora fé em que a lei vai finalmente mudar. Na passada segunda-feira, 16 de julho, ele e outros responsáveis das Comissões de Pescadores e População da Costa Portuguesa, um movimento que nasceu da indignação dos mariscadores alentejanos e depois se estendeu a todo o país, entregaram no Ministério do Ambiente os documentos finais com as suas propostas de alteração à lei: igualdade para todos os cidadãos, sem exceção; licença única para toda a costa portuguesa; apanha de maiores quantidades de marisco (suficientes para um convívio familiar); redução dos valores das multas; alteração das zonas de restrição, entre outras.

Na reunião com a ministra da Agricultura, Assunção Cristas, Francisco Violante diz que sentiu "abertura" e um "voto de confiança", e também um interesse especial pelo seu caso familiar, que considerou "absurdo" e prometeu "fazer alguma coisa". Até o secretário de Estado do Mar, Manuel Pinto Abreu, já prometeu uma visita a Sonega.

O Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (MAMAOT) confirmou ao Dinheiro Vivo que a lei irá ser revista, tendo já sido criado um grupo de trabalho que irá analisar o quadro legal da pesca lúdica e respetivas licenças, com vista a "uma solução final justa e equilibrada".

"A necessidade surgiu pela constatação de que o quadro que rege o exercício da pesca lúdica em geral, incluindo nas áreas protegidas, carece de correção. É uma oportunidade para que a realidade atual possa ser melhor refletida, sem que daí decorram alterações aos objetivos essenciais da atividade, nomeadamente o desenvolvimento sustentável e a proteção da verdadeira pesca lú-dica", disseram responsáveis do MAMAOT em declarações ao Dinheiro Vivo. Para breve, aguarda-se um relatório que será entregue aos secretários de Estado das Florestas e Desenvolvimento e do Mar.

Também integrada no grupo de trabalho, a Associação Nacional de Pescadores Lúdicos e Desportivos (ANPLED) diz que "esta alteração a uma lei desadequada e injusta peca por tardia", depois de ter provocado um decréscimo da população de pescadores lúdicos e de ter penalizado atividades económicas relacionadas com a atividade (comércio de materiais de pesca, hotelaria e restauração). "Esperamos uma proposta de alteração legislativa que torne a atividade mais apelativa para os jovens e que possa contribuir para o retorno daqueles que, com as restrições em vigor, se sentiram impelidos a abandoná-la", diz João Borges, responsável da ANPLED.

E enquanto a lei é analisada em Lisboa, nas arribas da praia da ilha do Pessegueiro, Francisco Violante continua indignado. E garante que foi a proibição de mariscar que fez o anterior Governo socialista perder as eleições no litoral alentejano, tal é a revolta das populações. "Era com isto que governávamos a vida. Os meus pais tinham oito filhos e mariscavam para garantir a sobrevivência da família. Trocávamos os polvos que apanhávamos por batatas. Eu sou filho de mar, comecei com dois ou três anos a vir à maré com o meu pai, depois ensinei ao meu filho. Para quê?" A última vez que mariscou com Tiago foi em abril de 2012, por alturas da Páscoa, arriscando uma multa pesada, entre os 250 e os 25 mil euros.

Depois de ter passado os verões de infância com os pés descalços nas rochas da praia de São Torpes, a ensinar os miúdos de Lisboa a mariscar, Francisco não sabe ainda se vai passar a tradição aos futuros netos. O "Chiquinho de São Torpes" dessa altura é agora o advogado de defesa dos mariscadores da região. Sobre a escassez de recursos e a necessidade de proteger as espécies, o mariscador garante que apenas 0,005% do que é pescado em Portugal diz respeito à pesca lúdica, mas não nega que havia quem apanhasse em excesso para vender nos restaurantes.

Acima de tudo, sublinha, é uma questão de tradição: para as pessoas que toda a vida mariscaram e agora não podem, para os filhos da terra que já não vêm a casa pela Páscoa para a grande apanha de marisco, para os turistas que fogem da costa e empobrecem o litoral alentejano e algarvio. Com uma nova reunião marcada para 3 de setembro, em Lisboa, Francisco Violante acredita que até ao final do ano vai poder comemorar a mudança da lei, com a aldeia em peso a "ir à maré" e depois uma festa que "vai ficar na história".

Tudo o que precisa de saber para mariscar
Peso máximo total de capturas diárias:

3 kg para mexilhões;
1 kg para perceves;
2 kg cumulativamente para ouriços-do-mar, navalheiras, lapas, burriés.

Como pode apanhar

Na apanha de ouriços, moluscos e crustáceos, pode ser usada uma faca de mariscar. É proibido o uso do gancho, pois é um meio de captura não seletivo.
Pesca à linha e pesca submarina: máximo diário de 7,5 kg, entre sargos, robalos, douradas, polvos, chocos, lulas e outras espécies. 
Fonte:  Dinheiro vivo

2 comentários:

Anónimo disse...

A malta vai cada vezes menos à pesca porque o peixe é cada vez menos. O resto é conversa !

Anónimo disse...

Recentemente passei por SONEGA e concretizei um desejo de perguntar o que sustentava aquela terra que, vista por quem passa na estrada com tanto casario parece ter alguma riqueza. Num restaurante foram-me assinalando as casas vazias e tentaram explicar a origem do nome onde confluiam 3 ou 4 freguesias e que os rendimentos das terras variavam conforme convinha, ou seja, num ano o rendimento vinha de uma propriedade ou campo de uma certa freguesia e noutro ano de outra, "sonegando" deste modo os rendimentos ao fisco e se calhar também ao pároco da freguesia..., digo, pároco da aldeia com 3 qualidades de fregueses de origens distintas.
Motivo de satisfação: se Portugal for invadido por milhões de chineses (turistas), temos uma lei em que por consenso do PS, PSD e CDS, o marisco continua só nas mãos de alguns e bem guardado..., bem português!